segunda-feira, 24 de junho de 2013

Filhote de Barrabás - 12

Tenório fica receoso em mostrar o diabinho, assim, de cara, ao velho parceiro.  Aproveitando-se da duvidosa mediunidade de que Profetinha se gabava (e rendera-lhe o apelido), pergunta se é possível que alguém lhe tenta rogado uma maldição ou algum espírito tentou apossar-se de seu corpo, que respondeu com essa espécie de reação alérgica estilo Michael Jackson. "Duvido muito, meu comparsa, que eu saiba, esse tipo de coisa não existe". Então Café joga a isca: "E se for obra de Asmodeu, o coisa-ruim das profundezas da terra; com seu rabo de seta, cornos afiados, olhos sanguinolentos, língua bipartida e de tridente enferrujado em punho?". A eloquência do sarará branco, somada a um reflexo de luz alaranjada que não havia no ambiente em seus olhos, fez o queixo de Freitas cair na hora. O linguajar de Café sempre foi o ápice do coloquial semi-alfabetizado da região.  Ficou próximo de se borrar.

Filhote de Barrabás - 11

Ao entrar na casa, Fidélio não pode acreditar no que viu. Reconheceu Café prontamente, pois era um de seus melhores amigos, e nunca se enganaria diante daquela queixada protuberante típica dos mulatos da região. "Caralho, Tenório, tu tá com vitiligo, meu filho", desembestou a falar desesperado. "Puta merda, eu tinha uma namorada que ficou toda malhada, mas eu te vi ontem e você tá tostadinho ainda. Lembra da Cíntia, aquela que era coxa? Pois é, além de coxa a disgrama tinha a pele toda salpicada de branco...". Tenório só olhava incrédulo para o amigo. O diabinho tinha se refugiado no bolso da calça dele. "Freitas, cala boca e me ajuda caralho, essa merda não é vitiligo". O profetinha olhou para ele e disse: "Eu vou te ajudar, calma, calma, me diz o que você acha que é, meu filho", disse enquanto acariciava a fuça de Cafuringa.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Filhote de Barrabás - 10

Café logo se afeiçoa pelo curupira. Percebendo que o bicho adquirira uma leve coloração vermelha, instintivamente, oferece o rasgado do braço para o danado lamber. Quando mais comia, mais vermelho ficava. Suas orelhinhas, dantes enroladas, ficam eretas, se revelando umas coisinhas pontiagudas, quase fofinhas. Estava nu, mas não tinha qualquer indício de genitália. A amamentação aliviou Tenório, que relaxou pela primeira vez desde o pisão no prego. O silêncio foi quebrado por Cafuringa, que fazia um festelê danado pela chegada de Fidélio Freitas, vulgo "O Profetinha".

Filhote de Barrabás - 9

Tenório balança o pé consegue se desvincilhar do mini-diabo que já estava enchendo a pança. Ele voa e para sua sorte mergulha de novo na merda. Quase deu pra ver seu sorriso de satisfação. Mas menos de um segundo depois, lá estava ele mamando de novo, como uma besta demoníaca que tinha que fazer jus à fama de mensageiro da desgraça. Café então entende que o satãzinho certamente é o responsável por aquela assombrosa e agradável brancura que agora o vestia e, sem pensar muito, agarra o lazarento que começa a espernear e guinchar com sofreguidão. "Calma, calma, seu filho da puta", ele grita e, incrivelmente, o pequeno cramunhão obedece.

Filhote de Barrabás - 8

Café caí de bunda na lama e usa os calcanhares para se afastar, ainda sentado, da pequena criatura cor de prata fosca que parecia se espreguiçar no bauzinho. O bicho soltou um guincho e escalou para fora da arca, tossindo um pó prateado fininho. O diabinho olhou com desprezo para Tenório e mergulhou numa montanha de bosta de galinha que havia no canto do galinheiro. Foi a deixa para nosso herói investigar a arca dourada. Uns dobrões de ouro, um dedal antigo com pó de prata, um velho papel quebradiço, que falta fez a escola agora, uma caixinha de osso... Mas antes de abri-la, Café sente uma fisgada na sola do pé: o diabinho estava mamando sangue no furo purulento do prego.

Filhote de Barrabás - 7

As dores aliviam e Tenório resolve pensar no que é realmente importante: sua nova cútis. Ele estava branco, porra, e isso era maior que qualquer problema que surgisse. "Branco, branco", pensa sem conseguir entender. Resolve procurar vestígios de aguarrás ou tinner perto do galinheiro que poderiam ter causado a desgraça, mas não encontra nada. No entanto, algo brilha no meio do barro. Café começa a escavar e encontra uma pequena arca. Sem hesitar, ele tenta abri-la, mas não obtém sucesso. O branquelo então pega uma madeira do avariado galinheiro e bate no bauzinho com toda a sua força. A peça doirada se abre e dentro dela um pequeno cramunhão desperta.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Filhote de Barrabás - 6

Achou o telefone no bolso de uma bermuda estilo surfista com estampa de zebra. A dentada no braço vertia sangue e o pé continuava a doer. Sorte que a investida de Cafuringa contra o nariz rendera-lhe pouco mais que um arranhão, mas deu uma coceira incrível; na certa alguma química dos nabos de Nélida havia passado da boca do cachorro para o nariz de Café. "E aí, cabra?" diz a voz ao telefone. "Freitas, meu bom, tu não vai acreditar: tô branco, bicho". "Tomou um susto, foi, hômi?" completou o amigo. Tenório explica o que aconteceu e Freitas, ainda incrédulo, combina de passar na casa do amigo mais tarde.  Lavando as feridas, Café fica puto quando percebe que a ninhada de codorninhas havia escapado pelo quebrado do seu galinheiro. "Mas que dia do caralho! Vá tomar no chicote", vociferou enquanto esfregava vinagre nos machucados.

Filhote de Barrabás - 5

O animal fedia a formicida, porque tem uma relação nada saudável com a horta da vizinha, a boazuda da região. Cafuringa costumava arrancar rabanetes e trucidar os alface-baby que Nélida plantava e para isso ficava de quatro na calçada exibindo o traseiro na direção da rua. Cafuringa avança sobre Café com violência. Podia não parecer, já que o bicho não demonstrava, mas ele amava o dono protegê-lo de um invasor branquelo não era nada mais que a sua obrigação. "Cafu, caralho, é o Café". O cachorro já havia mordido o antebraço e quase arrancado o nariz do dono, mas ao ouvir a voz inconfundível do dono bradar, parou instantaneamente. Um pouco confuso, Cafuringa cheira o velho amigo e vai embora. Logo o celular de Tenório começa a tocar no meio da bagunça e ajuda o jovem fantasma a encontrar o aparelho.

Filhote de Barrabás - 4

Além da novidade de ser branco como a neblina, uma televisão ligada em outro cômodo chiava alto fora de sintonia, uma criança gritava loucamente no barraco ao lado, um carro de som no beco anunciava roupas íntimas a R$ 2,50 no volume máximo. Tudo aquilo desnorteou Tenório, que mal terminou de mijar e já foi guardando a vara (que parecia não lhe pertencer) nas calças. Virou-se rapidamente para procurar seu telefone celular. Enquanto chafurdava na bagunça do cômodo, Cafuringa, seu fiel vira-latas, entra pela porta do quartinho e, antes que pudesse farejá-lo, tenta abocanhar a estranha figura albina que mergulhava numa montanha de roupas-sujas, papelão e pacotes de salgadinhos.

Filhote de Barrabás - 3

À medida que passa a mão no resto de seu corpo, toda a sua pele vai descolorindo. Tenório esquece a dor que sentia por causa do prego e de repente está todo branco. Sai correndo e vai ao lavabo que chamava de banheiro e se olha no caco de espelho onde costumava aparar a barba às sextas-feiras. Seu rosto estava malhado como a Tetê, vaca que reconhecia praticamente como uma irmã, tamanho o carinho de sua mãe, Joseva, pelo animal. Não podia acreditar no que via, por isso esfregou as mãos no rosto e se viu com dois anéis brancos em volta dos olhos. E continuou até ver que tinha virado outra pessoal. Sentiu vontade de mijar e tirou o pau pra fora sem pensar muito. Logo notou que o velho amigo também estava empalidecido. "Macunaíma...", pensou enquanto esvaziava a bexiga.

Filhote de Barrabás - 2

Café fica horrorizado ao perceber a facilidade com que sua pele estava se soltando. Quando chegou ao tornozelo, lembrou de como debochava de Gracindo, seu irmão, sempre que voltavam das viagens à sombria prainha onde seus pais mantinham um modestíssimo chalé. Sempre que havia sol, Gracindo, dono de uma tez muito branca, se tornava um verdadeiro pimentão, enquanto a pele parda de Café sequer ardia. Assim que o irmão começava a descascar, Tenório sempre o comparava a uma Cotiara, serpente da região, na troca de peles. Apesar da preocupação com sua cútis, a lembrança o fez soltar um riso gostoso, que foi um misto de nostalgia e saudade.

Filhote de Barrabás - 1

"Ui, ui", Tenório grita quando pisa em um enorme prego enferrujado. O metal, que já estava todo corroído pelo tempo, penetrou um centímetro no pé do infeliz. Tenório corre até o tanque e deixa a água cair sobre a ferida. O sangue e o barro das pernas se misturam e uma água suja escorre. No entanto, Tenório, conhecido como Café por conta da pele moreno clara, percebe que não é só o barro no jardim onde tentava consertar o galinheiro que está se desgrudando de seu corpo. A pele de Tenório vai se descolorindo, descolorindo, até ficar branquinha da silva, e o café virar leite.

terça-feira, 11 de junho de 2013

50

 A porta se abre rangendo e o pobre diabo se congela. Ele leva a mão ao bolso à procura da navalha gelada. Talvez a única companheira nessa jornada apesar do curto relacionamento. Sua mente acelera e o peito arrefece. A luz do sol invade o ambiente e faz Carlos ficar tonto diante da imagem em contra-luz. "Cheguei", diz a imagem envolta no dourado da tarde de outono. É Chico, Chico e seus dentões de tecla de piano. Ele olha dom desdém na direção de Carlos que prontamente o reconhece e sorri mais uma vez. Está fumando o tempo todo e de camiseta larga. Ele observa profundamente o POBRE DIABO pela última vez e diz: "fiz essa música pra você":

No palco, na praça, no circo, num banco de jardim...

Mas o que é isso?, Carlos pensa. De repente, num estrondo, Eusébio, Clodoalda, Gerson, o urubu, a mulata maritaca esclerosada, Éder, o caminhoneiro bigodudo Vicente, Vilma do bar, Januária, Éder, Vânia, o avestruz, Jaci, Rita Talarica, Josias, Vilson, Primo da Vilma, Altair, Catzo, o gato preto, Heitor, Bilica, Abel e Zélio Cancro, entram pela porta.

O primeiro a começar a cantar é Vicente: Correndo no escuro, pichado no muro, você vai saber de mim.

O som de orquestra surge em crescendo e uma revoada de pássaros multicoloridos invade a sala. Carlos dá as mãos para Zélio e para Gérson e, em uníssono, todos seguem Vicente:

Mambembe, cigano
Debaixo da ponte
Cantando
Por baixo da terra
Cantando
Na boca do povo
Cantando
Mendigo, malandro, muleque, mulambo bem ou mal
Cantando
Escravo fugido, um louco varrido
Vou fazer meu festival
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte
Cantando
Por baixo da terra
Cantando
Na boca do povo
Cantando
Poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu
Cantando
Dormindo na estrada, no nada, no nada
E esse mundo é todo meu
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte
Cantando
Por baixo da terra
Cantando
Na boca do povo
Cantando


FIM

49

Enxaguou a boca com um resto de desinfetante vencido que por ali estava, respirou fundo e pensou: "é agora" - o cheiro o fez lembrar de Gérson, o filho de ariranha preferiu ficar no bar a ajudá-lo em sua busca. Tentando não transparecer seu nervosismo, saiu do banheirinho sorrindo e puxou uma cadeira. Confrontaria Pedro Juan com palavras antes de passar-lhe a lâmina enferrujada na goela, dando lhe um sorriso de orelha a orelha como presente pré-morte. Mas o velho abutre ficou impassível às perguntas estranhas e sem muita objetividade de Carlos. Enquanto citava todos os personagens de seu périplo, é interrompido por batidas na porta. Que assombração poderia ser? Um novo personagem na trama ou algum velho conhecido? Seria Papa Camélio, seu desaparecido pai biológico ou Josias, seu finado e amado pai adotivo, erguido de sua cova no campo de girassóis, amante de Clodoalda?

segunda-feira, 10 de junho de 2013

48

(( a não continuidade dessa história se deu graças ao fato de o texto abaixo nunca ter sido devidamente numerado, causando grande confusão nesse que vos escreve ))

Blaaaarg, fez-se ouvir o jato que nascia no intestino de Carlos e atravessava seu corpo para depois banhar a casa de Galato. Este, incólume diante da cena, nada fez senão observar a cena se repetir três vezes. Estava acostumado com a podridão, aquilo era sua vida e era dessa energia que ele se alimentava. Gostava de sentir o cheiro daquilo tudo. Pedro Juan fumava continuamente e às vezes dava a impressão que vomitaria também. O pobre diabo então se recompôs e perguntou se poderia usar o banheiro, lavar um pouco o rosto. Quando chegou no banheiro, Carlos se olhou no espelho e como há muitos anos não fazia, prestou atenção em seu rosto. Lembrou da infância, do velho pai Camélio - "por onde andará papai?" -, enquanto sentia o gosto ácido do vômito corroendo a traquéia. Notou uma navalha sobre a pia, enfiou-a no bolso e virou-se na direção da porta. Estava na hora de mostrar que ele até podia ser pobre, mas que estava disposto até a matar para não morrer com um diabo.