sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

33

Carlos soltou uma lorota magnífica, e tirou da manga que Eusébio possuia o dado como extinto há mais de 20 anos, Picapau Benedito. E foi na mosca! Catzo berrou "Porca miséria! Uno Benedictus!". Carlos nunca tinha dava muita bola para as aves, mas jamais havia visto um saíra-sete-cores assim tão perto. O bichinho tinha a perna amarrada a um fio de pesca quase invisível preso a um enorme anel dourado no dedo cabeludo de Catzo. Era lindissímo, um misto de cores incríveis, parecia de mentira e assim que o pobre diabo esticou as pestanas pem próximas ao bicho, o mesmo se pos a cantar. Era mais um enfeitiçado pelo sete-cores. Iriam ao encontro de Eusébio. O velho estava enlouquecido. Sabia onde achar bons pavões, bastou uma rápida viagem até a charneca do Heitor, uns 30 quilometros dali. Lá, Catzo apelou, levou 6 casais de diferentes cores. Nem lembrava mais de Rita. Se contentaria apenas em ver o bicho e talvez com sorte, o levaria para casa. Na cachola de Carlos, saldaria sua dívida com Eusébio, afinal, estava levando um ricaço passarinheiro, 12 pavões e o sete-cores. O único temor que lhe restava: Seriam os habitantes da travecolândia, os desovadores de sua carcaça?

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A obviedade do escambo que se desenhava era tão evidente que Carlos se sentiu mal ao pensar nisso. A ideia é pedir a Rita que brincasse um pouquinho com o bastardo. Em troca o bastardo teria que lhe dar a bela ave. A puta de chofre concordou, pois tinha pra ela que sua missão na terra era ajudar aquele cão vadio. Pra ela, isso era amor. Quando abordaram o italiano, perceberam que a negociação não seria tão simples. Catzo queria pelo menos 4 horas de brincadeiras e, além disso, precisava saber o que Carlos faria com o saíra-sete-cores. Inocentemente o infeliz disse que daria a um gorila que atendia pelo nome de Eusébio, que era um comerciante de aves raras naquele pedaço. Rita estaria disposta a cumprir sua parte no acordo, mas a revelação de que o mameluco agia na região o fez ficar mais interessado em conhecê-lo. Catzo disse que daria o saíra se Carlos o contasse tudo sobre a espécie de Hulk brasileiro. "Posso dizer que o ponto fraco dele são os pavões", disse, como que se lembrando do sonho aterrorizador.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

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Buscando as últimas gotas de dignidade que lhe restavam, uma única lágrima escorreu em seu rosto. Seria este um índicio de alma? Ou tratava-se mesmo de um pobre diabo? Que desalmado que é, chorar seria impossível. Desculpou-se com Rita e lhe abraçou. Voltariam à cidade e com aqueles tostões, pegariam um transporte para a vila Vizinha, a prodigiosa Vila Pau no Cu, onde constataria se era mesmo ele o autor das atrocidades que Rita havia dito. O vilarejo Panambu tinha o singelo apelido pois era o antro dos veados e travecos da região, um buraco escuro e fedendo à porra- onde tudo era permitido - talvez nem tudo, pois Carlos havia chocado até mesmo os despudorados travecos. Se o líder deles estivesse furioso, Carlos estaria realmente encrencado, não há entidade viva ou em espírito que não temesse aquela aberração. Chegando ao centro, de mãos dadas, o casal cruza com Catzo. O gordo logo reconhece Rita de outra cidade e fica olhando fixamente para a mulatinha. Carlos nota o sete-cores no ombro do carcamano e assim, parecem se encarar, mas cada um tinha o olho no que queria.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

30

Quando Carlos resolveu impedir que Rita começasse o seu trabalho no bigodudo, foi uma verdadeira tragédia. O homem levava uma garrucha na cinta e ameaçou atirar em sua cara. Rita, por outro lado, ficou muito feliz de vê-lo ali e o abraçou. O bigodudo atendia pelo nome de Vicente e era um caminhoneiro que fazia entregas na região e, vez em quando, elegia uma cidade para passar a noite. Ele fica puto com a alegria de Rita e resolve ir embora. "Vocês são dois diabos que se merecem", diz. A puta pouco se importa com os tostões que acabara de abrir mão e beija Carlos no rosto. Nosso herói resolve abrir o jogo e contar sua saga. Rita revela que ouvira falar que alguém, meio homem, meio bicho, havia azucrinado uma vila vizinha na noite passada. A puta imaginou que tratava-se de Carlos. As histórias variavam entre o abusurdo e a pornografia exacerbada. Carlos não podia acreditar que ele protagonizara tantas histórias bizarras e rebelou-se contra a puta, que o esbofeteou no rosto. Estava na hora de nosso herói chorar.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

29

Em paralelo aos espalhafatosos acontecimentos no dia de Carlos, chegava à cidade um novo personagem. Catzo era um velho carcamano que negociava de tudo, um tipo de mafioso moderno que passava pelas pobres cidades usurpando seus bens e mulheres. Já bastante velho e rodado, tinha um apreço especial por aquele maldito povoado. Seja pela quantidade de pássaros que lá habitavam ou pela virgem que certamente compraria, ambos por alguns trocados. Portanto, lá estava Catzo com seu sete-cores no ombro. Fazia 4 anos que não pisava lá, assim foi visitar a boa cozinha de Vilma e levar um presentinho para Altair, que parecia ser o único amolecer o coração de pedra do italiano. Extorquiu alguns pobres coitados, deu um pontapé num gato preto e espantou-se como em tão pouco tempo os pássaros estavam sumindo da região, não tinha nenhum conhecimento do trabalho de Eusébio.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

28

Os símbolos do sonho ainda eram uma incógnita. Não sabia se encarnava o satanás que se tornara na viagem astral ou se mantinha a devoção pela procrastinação. A necessidade de achar Rita, a puta, o saíra, ou de entender como fora desovado, àquela altura já havia lhe cansado. Sabia que isso era efeito da lavagem espiritual a que fora exposto. Ao descer a picada rumo ao centro, olhou para o céu e viu um belíssimo papagaio-de-cara-roxa, tão raro quanto a ave que buscava. O pássaro voou rapidamente e se meteu no meio de um pequeno bosque que circundava o caminho. Carlos não titubeou e engendrou-se na pequena floresta. Caminhou por uma trilha recheada de gerânios cheirosos e elicônias pontiagudas. A terra estava úmida e um perfume inundava o ar, causando uma agradável tontura em nosso herói. Avistou novamente o papagaio. Ele pousara sobre um enorme galho de uma gigantesca árvore. Não sabia ao certo o que o levara até ali, mas era um alívio se comparado ao calor que fazia fora do bosque. Quando pensou em virar e ir embora, ouviu vozes se aproximando. Era Rita, e estava acompanhada de um bigodudo que, apesar de Carlos não se dar conta, era o mesmo caminhoneiro que o xingara enquanto cagava no meio-fio e, pelo jeito, ele iria utilizar os serviços da moçoila.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

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Com um jorro de água quente no rosto, Altair desperta o desfalecido Carlos. O sonho havia sido tão real que podia jurar que a insólita passagem no cafofo de Eusébio era tão real e pertubadora que o banho de sabugueira perdera todo o efeito. Agradeceu por não ter de fato presenciado o pavão usando as partes íntimas do gigante como morada. Aceitou o sonho como premonitório e que senão se acertasse com Eusébio, o mal lhe cairia sobre a cabeça. Agradeceu Dona Vilma e seguiu sua missão, ainda atordoado. Primeiro procuraria o pássaro entre os mercadores, que vez em quando apareciam com uns animais silvestres. Se não tivesse sucesso, pagaria algum molequinho para entrar na mata atrás do bicho e se ainda sim não resolvesse, precisaria viajar algumas horas até uma cidade um pouco distante dali, onde com certeza encontraria o sete-cores.

26

Quando Carlos acordou ainda estava sob o efeito das plantas medicinais de Vilma. Eusébio estava vestindo apenas um macacão jeans e observava calmamente o pobre diabo - ou o que sobrara dele. Por incrível que pareça, Carlos gostou daquela situação, sentia uma certa tranquilidade. O fato é que seu o corpo já estava reestabelecido e seu rompante de Golias se deu no instante em que a vulnerabilidade se sua carapaça era patente. Era necessário um pouco de repouso e reflexão depois da lavagem de dona Vilma, mas como ela nada sabia da noite anterior, não se preocupou com o infeliz. Eusébio tinha planos audaciosos para Carlos. Iria engaiolá-lo junto aos animais que entregaria à noite para os pais de santo do Gangas e o deixaria a mercê das entidades. Enquanto isso o amarrara a uma cadeira. Sua tromba esfolada doia muito e foi aí que Carlos descobriu que Eusébio, apesar de abstêmio, também era cliente da Tia Januária. Ele entorna o conhaque caseiro sobre o enorme mastro e urra como a Conga, tornando insuportável o barulho dos pombos e galinhas se debatendo nas gaiolas de tanto medo. O pobre diabo sentia uma estranha paz, mas o relógio ainda marcava 12h30 e a tarde prometia ser infernal.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

25

O banho de Vilma foi realmente primoroso. Enquanto descia a pinguela que ligava o centro ao boteco, uma auto-confiança prodigiosa foi tomando conta do corpo de Carlos. O que antes se tratava de um reles diabo, a cada passo em direção ao calamitoso centrinho daquele buraco, ia se tornando num incrível satanás. Nessa explosão de confiança, nosso herói passa a agir como um predador descerebrado e resolve acertar as contas com Eusébio naquele momento. Se irritou com o negro e bradou para a cidade:
"Aquele edifício humano e sua obsessão por animais, pro inferno! Ele e seu passarinho colorido, esse crioulo vai ver!". Mas esse não era Carlos. Normalmente iria atrás do pássaro, cagando sua dignidade para se ver longe de problemas. Talvez algo saíra errado no banho de sabugueira, provavelmente seu corpo tenha ficado "aberto" e uma entidade enfurecida se apossou do verme.
E lá foi o pobre diabo, ao encontro de Eusébio. Foi entrando sem cerimônia no zoologico particular do passarinheiro. A medida que ia cruzando as centenas de gaiolas, os animais se arrepiavam e gritavam. Os espirítas acreditam na sensibilidade animal para com as entidades, vai saber. Depois de decifrar um labirinto de jaulas e pocilgas achou a casinha de Eusébio. Por uma fresta na janela, Carlos espreitou e se deparou com o enorme negro, de costas e nu, com sua bunda preta e peluda. Sentiu ainda mais ódio e nojo. Até mesmo uma alma livre de qualquer pudor como Carlos se assombrou com o que viu em seguida. Eusébio tinha um espécie de braço entre as pernas, um cacete tão enorme que não poderia ser humano e trazia um pavão branco empoleirado no membro. Berrando, o furioso diabo irrompe pela janela, assustando Eusébio e o bicho, que apertou a tora do negro com voracidade, arrancando uma lasca do couro da enorme jeba.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

24

Durante aqueles instantes alegres, o cérebro de Carlos viajou novamente para o terreno de desova. Conseguia olhar-se estirado no meio do sangue e da sujeira, como se fosse um espírito observando o corpo abandonado. "Vilma, a senhora prepara uma limpeza pra mim?", Carlos disse referindo-se à lavagem espiritual que a dona do bar realizava nos amigos. Filha de Obaluaiyê, ela tinha a receita para livrá-lo daquela lembrança cinzenta e desagradável e das pragas adquiridas. Vilma olhou fundo nos olhos de Carlos, soltou a fumaça do cigarro e ordenou que Altair preparasse uma tina com água quente, apesar do calor escaldante. Carlos despiu-se e entrou na pequena bacia para ganhar um banho de folhas de sabugueiro. Em transe, dona Vilma pediu que São Lázaro o livrasse das pestilências enquanto Altair o banhava com uma concha. Carlos saiu magnetizado, ganhou duas guias, uma cor de terra e outra preta, e foi-se embora.

23

O sol estava cozinhando seus miolos, que já não serviam para muita coisa na sombra, sob um calor desses então, jamais conseguiria pensar numa boa forma de continuar sua investigação. Era questão de honra descobrir como havia ido parar na vala. Resolveu passar no bar da Vilma, afinal, tinha 200 contos no bolso e só uma coxinha gordurenta no estômago. Depois procuraria Rita e o saíra de Eusébio. O bar ficava no ponto mais alto do centro, era muito agradável e servia bons frutos do mar. Vilma é uma senhora muito simpática, solteirona. Seu trauma foi ter se envolvido com um primo de sangue na adolescência e engravidado. Desde então nunca mais teve um homem ou qualquer tipo de relacionamento, só a doentia fixação pelo filho, Altair, que saiu mondrongo das idéias, mas é um ótimo garçom e faxineiro em seu boteco. Carlos foi à forra. Pediu mariscos, peixe frito e um mexilhãozinho empanado, além de uma boa cerveja, pois a carcaça já pedia álcool. Se divertiu com as maluquices de Altair, suas respostas desconexas e dancinhas abobadas. Enfim encontrou um pouco de paz, dividiu um conhaque com Vilma, que nada sabia de sua epopéia do dia anterior. Estava renovado e até mesmo um pouco feliz.

22

O calor já estava insuportável e Carlos lembrou-se que ainda havia uma dívida a saldar com Eusébio: precisava encontrar um saíra-sete-cores. Clodoalda ficou muito feliz ao ver Carlos. Tinha grande carinho pelo jovem diabo, pois era muito amiga de seu finado pai, Josias. Corre à boca pequena que o homem tinha grande apreço pela enorme criatura, inclusive revelando em seu leito de morte que ela fora o amor de sua vida. Desculpou-se pelo que seu namorado, Vilson, havia feito na noite passada. Carlos explicou que não se importava com isso, pois sequer lembra-se de qualquer coisa. "Eu não tenho memória de elefante", disse preparando o terreno para o prêmio que aquela altura sentia que estava em suas mãos. "É, meu filho, você ganhou 200 contos". Carlos abriu um sorriso. Era a primeira notícia boa que recebera desde sabe-se lá quando. Perguntou por Jaci, pois queria queimar os tostões com ela mais tarde, mas a mãe não sabia onde ela poderia estar a esta hora. Carlos limpa o suor do rosto e resolve continuar seu calvário. Pensou em procurar Eusébio e oferecer 50 pacotes ao invés do pássaro.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

21

O balconista contou que no meio da tarde pintou uma mulatinha no boteco, de língua afiada e boquete idem. Recém chegada na cidade, a jovem meretriz foi direto ao piolhento Galo Fêmea, antro dos bêbados e despudorados da cidade. Éder, por sua posição hierárquica superior - afinal, era ele quem servia a bebida -, foi o primeiro a usar os encantos da petiz. Logo após o servicinho atrás do balcão, teve a grande sacada: "Eu mando a puta encontrar o Carlos, que derrama o leite nela e vem reabastecer aqui". Sempre após uma fornicada, Carlos ia ao bar com uma sede sem fim e enxugava madrugada adentro romanceando como havia sido a foda. Vez em quando ele enrabava um veado, mas isso ele não contava. Só que ao invés de chegar com mais uma história de suas escatológicas transas, Carlos apareceu com o singelo e enorme Eusébio. Éder, preferiu não se meter, já que o abstêmio criador de animais estava bancando rum e dando orientações de como se portar no Gangas. A puta foi até os amigos no coreto e lá foi uma festa. Cantaram, dançaram, se esfregaram um pouco e rabiscaram poemas chulos, do calibre de "rita talarica, devolva meu coração". Mas a mulatinha, vinda do interior e um tanto bronca, se encantou pelo pobre diabo e ficou furiosa quando o mesmo se picou com Eusébio em troca de bebida. "Fiquei lá com ela, que matraqueava como uma louca, só querendo saber que horas você voltava, foi aí que ofereci 5 merréis pra ela ir te procurar e pra me livrar da louca". Mas ninguem mais foi visto, Carlos ou Rita. Despede-se dos amigos e segue para o beco das putas, mas não custava nada passar na banca da Clodô, conferir o resultado do bicho e quem sabe Jaci estaria por lá com seus peitões.

20

O telefone era de Vânia que, a despeito do nome, era um rapazote magro e sardento que vez ou outra vinha à cidade em busca de diversão (leia-se: bebida barata e putas aos montes). Quando Carlos se anunciou, Vânia ficou feliz da vida. Nosso herói fez-se de avestruz e esperou a história se desenrolar antes de qualquer manifestação. Ficou sabendo da noitada na casa da mesma Clodoalda, que lhe empurrara o bilhete com a irônica dezena 48 do elefante. Quem organizara a bagunça fora a belíssima filha da orca, Jaci. Eles ficaram lá até perto da meia-noite, depois que Carlos abandonou Eusébio com a bicharada. Vânia ainda disse que os dois divertiam-se como nunca até o momento em que o namorado da Clodô chegou no barraco e suspendeu o consumo da birita que lhe pertencia. Carlos, que estava tentando aplicar o sapeca iá-íá em Jaci ficou na mão e disse que voltaria à labuta. Depois disso, Vânia não o viu mais... Desligou o telefone ainda mais apavorado com sua falta de memória enquanto Gérson levantou e gritou: "e a puta que eu paguei pra te encontrar?!". Ele estava falando da piranha que abordou Carlos ao lado da vala, e era a mesma que inspirara o nefasto poema na pracinha.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

19

Estupefato, nosso herói demorou a digerir que tão facilmente havia se livrado da pena com Eusébio e por tabela com os pais de santo. Declarou a Éder não crer em tamanha sorte, mas o amigo o convenceu de que Eusébio era sábio e de palavra. O compadre, em comemoração ofereceu uma boa cana envelheciada ao ressuscitado Carlos, que recusou. Para reconstituir sua noitada fatídica era necessário estar sóbrio. A investigação, porém, estava apenas começando. Já sabe que bebeu a tarde inteira, foi ao Galo Fêmea e deveria ter ido ao Gangas com Eusébio. Onde foi parar? Quem seria a mulata esquizofrênica que o abordou na vala? Quem o espancou até ser dado como morto? Muitas perguntas sem respostas. Olhou novamente o poema, era horrível. O papel que ainda não havia lido era uma aposta no jogo do bicho da banquinha da Clodoalda, uma gorda funesta de 220 quilos. Por fim, o papel com o telefone. Vai até o aparelho no balcão do bar e disca os oito números, rezando para que não seja algum barrabás que atenda. Enquanto chama, ele engole a "sebosinha", nome carinhoso dado à coxinha do Galo Fêmea, em duas dentadas. Estava deliciosa.

18

Eusébio estava condescendente até aquele instante, mas o jogo não demoraria a virar. O crioulo, que pouco se importava se um preto velho lançasse-lhe uma maldição cavernosa, pois era cético como um tatu, estava pronto para decretar uma dívida eterna de Carlos para com ele, mas quando Éder abriu o bico e começou a falar da noite regada a rum e cachaça, Zezé - e essa era a forma como as mulheres o chamavam -, percebeu a ligação íntima dos dois, o compadrio, pois não é bobo. Trata-se de uma amizade de longa data, alicerçada por centenas de garrafas vazias. Carlos era o principal cliente do Galo Fêmea. Ali é seu reduto, seu lar. A simbólica morte da noite anterior nada mais era que o resultado sintomático de uma relação doentia. Aquele cenário deu asco a Eusébio. Pensou nas araras e jabutis que tanto amava e ficou enojado de ter financiado bebida àquela alma desgraçada. "Me arrume um saíra-sete-cores que estamos conversados. Com os pais de santo eu me viro...", disse o gigante, interrompendo o testemunho de Éder que falava ao mesmo tempo em que servia uma coxinha a Carlos.

17

"Gersa! Caralho! O que aconteceu? Acordei numa vala, todo surrado!" Gérson confirmou que haviam bebido, e muito, no coreto da pracinha. Nisso, nosso herói lembrou que passaram a tarde cantando velhos sambas-canções e escrevendo poemas, o combustível: um conhaque caseiro que a velha Janúaria produzia numa destilaria fedorenta não muito longe dali e que sempre resulta numa diarréia incendiária e uma coceira anal violenta. Gerson contou também que certa altura Eusébio apareceu oferecerecendo bebida em troca de um pouco de trabalho braçal e que mesmo sabendo que seria para o Sete Gangas, Carlos prontamente aceitou - Gérson, mesmo em grande porre, não ousaria se meter com o famigerado terreiro. Assim, Eusébio e Carlos seguiram para o Galo Fêmea. Edér, o balconista, seria o próximo a ser interrogado.

16

Na porta do bar Carlos ameaçou perguntar se fora o enorme tição que lhe desovara no terreno baldio, mas a coragem não veio. Ainda era difícil tocar em assunto tão desgraçado. Carlos sabia dos perigos da raiva e da leptospirose que o cercavam  até HIV achava que poderia ter contraído. Entraram sem cerimônia em busca de Gérson e, como é só pensar no diabo que ele mostra o rabo, lá estava ele, sentado com olhos esbugalhados, cenho enrugado e o cheiro de desinfetante que lhe era peculiar. Carlos ficou feliz de vê-lo ali, pois não sabia o que a noite passada havia reservado ao amigo. Estava catatônico. "Gerson!", gritou. Ele levantou a cabeça incrédulo. "Tinha certeza que estava morto, seu biltre!".

15

Enquanto seguiam ao Galo Femêa algo muito estranho acontecia.
Na fazendinha de Eusébio, os animais estavam ouriçados e barulhentos, como se prevessem o mal que estaria por vir. Uma velha coruja-das-torres, ave das mais agourentas, deu seu último pio e morreu. O mais sinistro é que permaneceu empoleirada e de olhos abertos, como uma múmia de rapina.
A propriedade de Eusébio fica um tanto afastada do pequeno centro urbano. Um sítio próspero e muito limpo, apesar das centenas - talvez até milhares de animais que lá habitam. Um enorme pomar e um pequeno lago lamacento, onde ele costuma nadar nu. O descomunal crioulo vivia muito bem. Seguindo pela mesma estrada, que é de barro puro e poeirento, chega-se à enorme propriedade dos pais-de-santo: o Terreiro Sete Gangas. Um grande templo que mistura as mais diferentes vertentes espíritas. Lá pode se mexer desde as mais leves das religiões afro até as mais ocultas. Sabe-se também, que nos domínios do Gangas há altares para Asmodeo e recitais do capa preta de São Cipriano, enfim, um pessoal que jamais deve-se arrumar encrenca. Carlos peidava fino somente em pensar nos terríveis cramunhões engarrafados que lá eram criados. Por sorte, Eusébio parecia estar do seu lado na confusão com o Gangas, e nesse momento delicado, o cético negrão é um bom aliado. As contas entre os dois poderiam ser acertadas com trabalho ou favores sexuais, neste quesito, Carlos não se importava, desde que se livrasse dos mestiços do Gangas.

domingo, 11 de janeiro de 2009

14

Eusébio, alheio ao que a aparência poderia sugerir, tratava-se de um sujeito sensato e dono de uma voz doce. Carlos pediu para se vestir e ouviu um "fique à vontade" do gigante. Meio sem jeito, desenrolou-se da toalha pensando se, além de gostar de aves e cabeças de bode, Eusébio curtia um homem branco de pele castigada pelo sol. Veste bermuda jeans e uma camiseta branca ao mesmo tempo em que percebe que Eusébio traz um saco consigo. Ao notar a curiosidade de Carlos, o gigante revela: "é uma encomenda". Carlos então imaginou que os pais-de-santo haviam amaldiçoado Eusébio e, por tabela, a desgraça cairia sobre sua cabeça. E isso, sem dúvida, era a maior desgraça que poderia acontecer.

13

"Temos contas a acertar", disse o gigante que tinha o rosto todo talhado por centenas de pequenas cicatrizes e um olho de vidro. Diziam por aí que fora atacado por dezenas de quero-queros numa caçada e quase faleceu. Eusébio, este era seu nome, explicou que na noite anterior financiou rodadas de um rum venenoso e que, em troca, Carlos o ajudaria com uma entrega de animais madrugada adentro. Um terreiro da região havia encomendado cerca de 50 bichos, entre galinhas, pombos e coelhos, mas de alguma forma nosso herói escapuliu da obrigação, deixando Eusébio na mão dos os terríveis pais-de-santo. Assombrado, Carlos imaginou o quanto havia bebido para tamanha amnésia. Sugeriu em irem ao Galo Fêmea, palco do acerto entre os dois. A esta hora já estaria aberto e os bebuns da noite anterior com certeza lá estariam e testemunhariam, a seu favor ou não.

12

Carlos sai do banho enrolado em sua toalha grená. Só agora percebe os diversos focos de dor espalhados por seu corpo. Dói tudo. Prefere não perguntar "quem é?", então simplesmente gira a maçaneta e dá de cara com um enorme homem de ascendência africana que reconhece prontamente! É o sujeito que vende animais silvestres, principalmente aves, na região. Ficou famoso quando andou pelo bairro com um pavão macho na coleira. Nunca haviam trocado uma palavra.

11

Notou um vulto o espreitando na penumbra do corredor sem eletricidade. Estremecido, esperou um golpe pelas costas e enfim morreria, livrando-se desta loucura. Mas nada acontece e Carlos, finalmente, está em casa. Tirou os trapos que restaram de seu shorts e camiseta e foi direto para o chuveiro, ligou e, assim que a água marrom inicial se tornou limpa, entrou de uma vez na ducha geladíssima, deu um berro e assim começou a se lavar. Alguém bate na porta.

10

Espantou o bicho e notou uma caixa d'água no meio do matagal. Quebrou a tampa e se limpou rapidamente, antes que alguém atirasse com uma espingarda no seu cu. Voltou para o meio-fio e disparou. O vento que batia contra o rosto o aliviava e fazia lembrar-se que estava vivo. Dali a pouco o sol iria rachar a cabeça de todos. Quando chegou ao bairro, foi ao bar da Vilma para pindurar um pouco de pão e conhaque, mas o estabelecimento ainda não estava aberto. "Hoje é domingo", pensou. Foi ao seu prédio e caminhou pelo corredor até o seu apartamento. Quando girou a chave na fechadura, percebeu que não estava só.

sábado, 10 de janeiro de 2009

9

Ignorou a fome e os ferimentos – corria como o maior dos bastardos. No entanto, à medida que o centro se aproximava, Carlos sentiu uma erupção plutônica em seu ventre que o obrigou a parar. A merda fervente já lhe escorria pelas coxas quando botou-se de cócoras e obrou a massa fecal na beira da estrada. "Morfético! Vá cagar na puta que o pariu!", gritou um caminhoneiro bigodudo ao tirar uma fina do pobre diabo. Antes que o ato intestinal se encerrasse, o mesmo urubu atrasado se empoleirou na cabeça do infeliz. Grotesco.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

8

Olhou a redor e percebeu que não precisava mais daquilo. Deixou a piranha e saiu correndo rumo ao centro. Estava na hora de falar com Gérson, de ir ao bar Galo Fêmea e arrancar detalhes da noite com Éder, que lhe servira a cachaça batizada com danação. Antes, porém, era melhor passar em seu quarto alugado e tomar um banho gelado que o livraria das pestilências do terreno baldio. A imagem de ratazanas andando sobre o seu corpo não lhe saia da cabeça. Enquanto corria ainda ouviu a voz da puta: "volte aqui seu filho de quenga!”

7


Nesse instante investigou sua chave e papéis. A chave, sabia muito bem para o que servia e agradeceu por não ter-la perdido, já os papéis... Um telefone desconhecido, sem identificação; um verso de um poema inacabado que o fez recordar do litro de querosene que dividiu com seu colega Gérson na tarde anterior. Antes que pudesse ler o terceiro papel, a voz demoníaca da mulata invade a investigação: "chupador de cacete, me dá atenção!" O linguajar da mulher fez Carlos ter a certeza de que era uma puta, das mais fedorentas... Se não lembrava-se dela, não valia a pena saber por que a canalha o conhecia.

6

Levanta-se e ganha um abraço apertado, mas não consegue parar de pensar que não passa de uma broaca. Imaginou-se desembainhando a vara ali mesmo, mas a tensão que mantém seu corpo enrijecido o impediria de ter uma ereção. A mulher se pôs a falar como uma maritaca esclerosada, o que atingiu a têmpora de nosso herói transformando-se em uma dor-de-cabeça insuportável. E com ela, como que num espasmo, lembranças da noite passada surgiram na mente de Carlos.

5

A ave era negra como a noite, seus pequenos olhos sanguinolentos fitavam aquela decrépita figura, que cambaleante, finalmente conseguiu se levantar - mesmo o comedor de carniça dos céus parecia ter asco do infeliz. Naquela situação, nosso herói logo imaginou um bom assado do animal, acompanhado de meia dúzia de geladas, sua divagação é interrompida pela voz afônica da mulher: "Então está vivo? Me abraça, filho da puta".


quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

4

Já pensava em ir à praia para dar um mergulho e fingir ser mendigo em troca de água e frutos do mar, mas avistou uma garota que se aproximava. "Pra estar nessa área, deve ser puta", pensou. A mulata chegou perto e gritou o nome do pobre diabo em voz alta, feliz da vida que ele estava ali. Podia ser uma personagem da noite anterior aparecendo repentinamente. Quando ele ameaçou levantar, um atrasado urubu pousou ao seu lado, como se estivesse interessado nos piolhos de sua cabeça.

3

Quando atingiu uma boa distância da terrível vala de sangue e fedor, parou. A primeira tragada de oxigênio puro reconfortou seus pulmões enfraquecidos e assim se jogou à sombra de uma árvore. Antes de qualquer coisa, precisava de água e respostas, seu corpo deu a primeira, vomitou um misto de sangue e bílis. Não recorda a ultima vez que seu estomago recebia algo sólido. Exausto, questionou a ausência de urubus naquele mar de carne estragada.

2

Nunca havia estado naquele local. Nunca sentira aquele fedor matinal, quando os primeiros raios de sol tocam a podridão e faz ascender, claudicante, o cheiro da morte. Enquanto corria tentava se lembrar do que poderia ter o levado até ali. Provavelmente mastigara comprimidos a seco, batizando o estômago cheio de álcool barato. A chave ainda estava no bolso, junto com alguns papéis dobrados que poderiam dar dicas de como fora parar ali naquele inferno a céu aberto. Porém, mais do que isso, lhe intrigava saber como atingira um estado tão lamentável a ponto de ser dado como falecido.

1

Acordou. Não sabia onde estava. Antes de despertar, seria facilmente confundido com as carcaças que jaziam à sua volta. Fora jogado em um terreno de desova. Levantou-se, a ressaca impediu-lhe de sentir o cheiro putrefato dos cadáveres em decomposição. Com a garganta cheia de sangue e os olhos doendo, espantou as milhares de moscas que davam rasantes, entravam em sua boca e ouvidos, embaraçavam-se nos seus cabelos. Saiu correndo por um matagal refazendo os passos da última noite.

1° Texto


Carlos, o Pobre Diabo



Por Victor Hollanda e Tom Bolívar